DIÁRIODACAMILA
4 min readAug 6, 2019

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A razão do meu alívio quando te vejo dançar e sorrir — para Anielle, Marielle, Claudia, Benjamin, minha mãe e os meninos.

Te ver dançando assim me diz tanta coisa, é um abraço de longe, que enxuga o sal da lágrima que ainda anda incrustado por aqui.

18/03/2018 21:58, pouco depois do Fantástico no ar.

“(…)

Não consigo respirar direito.

(…)

Eu tenho duas opções: ficar sem respirar ou chorar.

(…)

Quando te enviei o ’não sei’ era pra pedir socorro.

Não dá pra explicar o que aconteceu porque nem eu sei o que aconteceu.

Eu acho que to em choque.

Ou estava.

Estou com medo de chorar de novo.

Nunca, nem quando minha mãe morreu. fiquei assim ou chorei assim”.

Naquele dia, pensei que passaria insólita por todas as notícias terríveis que nem me lembro mais. Mas resolveram torcer a história dela, dele na nossa cara.

“Não consigo acreditar que ela não vai mais voltar”, diz companheira de Marielle.

Nem ela nem o pequeno Benjamin de uma outra reportagem sobre o Complexo do Alemão. O que estão querendo, matar de tristeza quem também está em casa tentando se proteger? Eu vou me acabar, mas vou continuar assistindo.

“Eu ia dizer pra você não assistir TV”, ele disse no dia seguinte. Mas já era tarde demais. E tudo o que eu tinha pra ver, eu já tinha visto, mas não tinha sentido.

Aquele dia eu chorei como se a vida tivesse acabado.

Dez anos atrás eu tinha perdido minha mãe, na época, chorei muito. Nos anos que seguiram, chorei mais um pouco. Mais a cada dia, mas nada comparado a isso aqui.

Não sei se a entrevista da sua mãe me fez lembrar a minha ou da sua filha me fez lembrar a entrevista que eu daria se alguém me perguntasse sobre a minha mãe.

O bebê que ainda não tinha nascido mas também já tinha uma história morta.

Chorei pelo coração no ar que minha mãe desenhou no dia anterior de sua morte. Ele insistia em aparecer na minha mente feito um balão para que e recordasse que o amor também é dor e às vezes só isso.

E cada minuto que passava chorava mais. Desliguei a TV na ânsia de fugir mas não consegui, ali caindo no chão como se ele desabasse, fui percebendo.

Chorava pelos 5 meninos e os 111 tiros de Costa Barros. As lembranças daquele enterro coletivo que nunca foram postas pra fora, ficaram entaladas em algum lugar da minha consciência. Eu lembrei da mãe muda, incrédula talvez, atônita com certeza, lembrei da avó que falava, da tia que contava histórias, e até pelo menino que se salvou, chorei.

Não sei quantas pessoas pensam que jornalista vive alheio à mortes. Também não sei quantos amigos meus já estão vacinados contra tudo isso. Só sei que minha profilaxia nunca existiu, se existiu, não aconteceu.

Nada na vida apaga as coisas que a gente é obrigado a ver ser chorar. As coisas que a gente não consegue ou não tem pra quem perguntar. E depois não tem pra quem contar porque contar — pra quem? — é reviver tudo de novo, só que menos abafado.

Cada vez que eu fechava os olhos, uma bala me atingia, uma mãe gritava, um caixão baixava, um coveiro passava uma colher de massa de cimento que não sela. Nunca vou conseguir explicar ao certo e nem saber se tinha o direito de sentir tudo o que senti. Só sei que eu pedia desculpas a todos eles por eles, por seguir viva na minha inconstante vontade de não estar, e eles terem ido sem nem poder desejar mais da vida.

Lembrei da Claudia, que arrastada tempos atrás, teve sua história inicialmente contada por mim numa derradeira notinha de fim de plantão e abafada numa redação em que ela só se tornava número. “Olha, tem uma senhora que morreu durante um tiroteio na favela… (…) O quê mais? A polícia não sabe dizer, não tem mais nada na escuta. Então deixa”.

Era você arrastada por um carro de polícia quem sabe ainda viva, dilacerado a oportunidade de ver sua família crescer contigo.

Você já achou que fosse morrer? Já fechou os olhos sem ar desejando que isso acontecesse porque a dor é demais? Eu sim. Não conseguia respirar. Se parava de chorar sufocava, se chorava, sufocava mais.

Nem toda dor do mundo me preparou para aquela e eu não sei como saí daquele transe profundo de desilusão com a vida, a não lembro como levantei, como parei, abri a porta para pedir a ajuda a vizinha, última bala atravessou, acordei e voltei a vida que eu nem sei se tinha o direito de ter.

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DIÁRIODACAMILA

“I write what I like” would say Steve Biko this days. Here you follow some of my deepest thoughts in an English, Spanish and Portuguese version.